Sofre com o que tem e com aquilo que não pode ter.
- Não posso aturar comigo, nem posso fugir de mim.
Tira os cobertores de cima dela. Grande frio, grande medo de acordar. Mas esse é o tempo e é essa a situação. Abre a janela e depara-se com a chuva que cai lá fora. Não mais àquela garoa chata paulistana, mas as grossas gotas de chuva de verão – Esse é o tempo. O tempo é outro.
Costuma ter a indecente e masoquista mania de tentar se recordar onde estava no ano anterior; bobagem, nenhuma mudança, além de, talvez, com ousadia, a posição da sua cama no quarto. Sai da janela e senta-se no colchão, com os cobertores ainda a dobrar. Se dói em pensar no ano seguinte e na possível mesma conclusão que chegou hoje e que chega há anos, desde aquele que resolveram colocá-la no mundo.
- É uma menina! – E sua mãe, feliz, a recebe no colo aos prantos, pensando em seu futuro promissor, construindo planos de vida. Recém colocada no enxoval de bebê, sua mãe, já sonhava no enxoval de seu casamento perfeito, com seus futuros netos e genro perfeito.
- Que bênção, que bênção! – Que desgraça. Pobre futura senhora. Além dela mesma, sua mãe era outra por quem sofria. Lembra-se dos momentos quase sentimentais, quase amorosos que passara com ela. Dos jantares em que ela preparava para a família, e que no fim, sempre meio bêbada, meio de emoção, meio de álcool, largava-se em risos e besteiras qualquer. Havia tanta ternura na sua lembrança, que conseguia lembrar sorrindo até mesmo dos xingamentos e pragas pré-preparativos que sempre ouvia. Pensa que aqueles xingamentos não eram sinceros. Mas grande parte dele são reais, sabe disso.
Deita-se de novo. Tentada em colocar as cobertas de volta em cima dela, mas sente o frio como um flagelo, um flagelo bom. O conforto, pensa, o conforto calaria seus pensamentos como sempre o fez. Não queria mais se calar. Queria fazer, gritar (Ah! Há quantos não grita!), queria, queria, quantas frustrações. Coloca os pezinhos pra dentro do cobertor, ora, chega disso, já já é hora do bar, de esconder (e não secar) as lágrimas. De rir com quem chora também.
Recordou de novo de sua mãe. Ela vai chegar daqui uns tempos. Não se sabe se vai chegar triste ou feliz, tudo depende do dia, do humor, do momento. E, disso ela entende.
Tola, lembrou-se também de que chegou a fazer um trato com o mundo quando criança (agora com o cobertor até os joelhos), de que se daria um pouquinho ao mundo, com a condição de que ele também se desse um pouco pra ela. – Mundo filho-da-puta – falou baixinho e logo olhou em volta com vergonha de que alguém poderia tê-la escutado. A vergonha virou lamento, de certo não a escutaram. Estava sozinha, era sozinha, não importava o quão junto estava de outras pessoas. Nunca sentiam por ela, como ela sentia pelos outros.
- Mundo filho-da-puta.
Fechou os olhos. Não o tinha feito até então pra não cair àquela gota quente que estava presa. Mas caiu. E junto daquela, caíram várias outras, cada uma delas com um motivo-sem-motivo. Agora sente mais frio, a chuva lá de fora dá lugar àquela ventania úmida. Resolve enfim se levantar, dobrar as cobertas, as cômodas cobertas, e, fechar a janela. Besteira. se afunda de vez embaixo delas e lá permanece. Esperando. Um amor, uma companhia. Uma fresta de Sol, que seja, vinda da janela.
Chora. Dá uma gargalhada alta. Vira-se de lado e dorme. Com os cobertores na sua cabeça.
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