domingo, 31 de janeiro de 2010

Por Lya Luft

Lembro-me de ti
Nesse instante absoluto,
A vida conduzida por um fio de música.
Intenso e delicado, ele vai nos fechando num casulo
Onde tudo será permitido.

Se é isso que podemos ter,
Que seja forte. Que seja único.
Tão íntimo quanto ouvirmos a mesma melodia,
Tendo o mesmo - esplêndido - pensamento.


Vou dançar meu samba. Comigo mesma. E não espero (talvez não precise) de companhia. Ao luar, canto, danço, sinto meu samba. "Vou pra rua e bebo tempestade".

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Alvorada



Ao som dele que me diz tantas coisas. Ao clima da chuva, que me diz tantas coisas. Ao bode total, que me faz pensar em tantas coisas.
Vai chegar a noite. E a lua que me fará pensar em tantas coisas. E as coisas que me fazem sentir tantas coisas...
E as coisas, que oras, são tantas coisas.
E amanhece (amanheço) novamente.
Queixo-me ás rosas...
"Como me sinto? Como se colocassem dois olhos sobre uma mesa e dissessem a mim, a mim que sou cego: isso é aquilo que vê, essa é a matéria que vê. Toco os dois olhos sobre a mesa, lisos, tépidos ainda, arrancaram há pouco, gelatinosos, mas não vejo o ver. É assim que sinto, tentando materializar na narrativa a convulsão do meu espírito, e desbocado e cruel, manchado de tintas, essas pedras escuras do não saber dizer, tento amputado conhecer o passo, cego conhecer a luz, ausente de braços tento te abraçar."
Hilda Hilst.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Sobre o que é

Talvez, nesse misto meio paradoxal de dor e esperança, é que me agarro e me sustento e que eu não quero me soltar.
Não sei se a questão foi/é/será tempo. Não me atrevo a perguntar, mas talvez não importe, tempo é uma coisa tão vasta e nula; quem somos nós para explicarmos ou tentar entendê-lo?
Nesse misto de reciprocidade e rejeição, há tantas outras coisas, que, quisera eu, poder te dizer pra esquecer disso tudo e viver, me viver. Me lembrei da frase que me dissera, que na verdade é mais fácil do que imaginávamos. Queria poder muito te dizer isso agora.
De qualquer forma, meu bem, te espero na esquina de sempre.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Insônia

"Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.
Espera-me uma insônia da largura dos astros.
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.
Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite -
Meu deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!
Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!
Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
- Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não me sucederam
- Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.
Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.
Estou escrevendo versos realmente simpáticos -
Versos há dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!
Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo - sei lá salvo o quê...
Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!
Ó madrugadas, tardas tanto...Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.
Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
Vem, madrugada, chega!
Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.
Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exatamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exatamente. Mas não durmo."
Fernando Pessoa.
Definitivamente, só isso.

O mistério das coisas

"O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.

Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que o sonho de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.

Sim, eis que os meus sentidos aprenderam sozinhos:
As coisas não tem significação: tem existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas."

Fernando Pessoa, claro.